2008-02-06

IV Centenário - P.Antº Vieira

Neste tempo de vaidades "metro" e de autoridade "à la carte", talvez nos faça falta ouvir a voz autorizada de um português que ficou na História pela sua autoridade moral e não por ser "mais esperto" dos que os seus concidadãos:

«"...Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Tão alheia cousa, é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer!

E eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá do mar para a terra... Para cá, para cá; para a Cidade é que haveis de olhar... Vedes vós todo aquele bulir... todo aquele andar... aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer calçadas... aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de comer.

Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o desgraçado a despedaçá-lo e comê-lo: comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos, e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; ... come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

...Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão, declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na República, estes são os comidos. E não só diz, que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e devoram.

... E de que modo os devoram e comem? Não como os outros comeres, senão como o pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, há dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém, pão é comer de todos os dias... e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que não os defraudem, em que os não comam, traguem e devorem:

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Parece-vos bem isto, peixes?..."

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Excertos "Sermão de Sto.António aos Peixes"

do Padre António Vieira»

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Num mundo em que tudo parece decidido,
ainda há espaço
para o exercício de um pensamento cidadão